O que é História Pública?

Conceitos, na medida em que envolvem todo o processo semiótico, não podem ser definidos; apenas aquilo que não tem história pode ser definido (NIETZSCHE, 1956, apud KOSELLECK, 2011, p. 20).

Como todo conceito, o de História Pública possuí múltiplos significados. De 11 a 13 de fevereiro de 2015, na Villa Schifanoia, subúrbio de Florença, ocorreu o evento “História Pública e a Mídia” (2015). O encontro registra testemunhos de oito países europeus, todos respondendo a uma única pergunta: “o que é História Pública”? Para Argyri Panezi, trata-se da escrita da história “apresentada de forma acessível ao grande público”. Christine Dupont, fala da História Pública como “campo de comunicação da história”, no qual a historiadora “põe-se em perigo”, entendendo que sua formação é digna de ser compartilhada com um público maior do que o limitado círculo de pares. Étienne Deschamps lembra que se trata de uma “abordagem histórica firmada em uma formação acadêmica tradicional”, oriunda do meio universitário, mas que “se transforma em uma forma de engajamento com a sociedade (…), de maneira a responder às demandas sociais” (2015). Indo mais longe, Marta Carosio defende o envolvimento do público no “processo de pesquisa histórica”, de maneira a fazê-lo refletir sobre a relevância do passado na vida social. Jozefien de Bock leva esse argumento adiante, afirmando que História Pública “não é apresentar a história para uma audiência, mas o momento em que acadêmicos e não acadêmicos escrevem história juntos” (GRELE, 1981, p. 46). Manfredi Scanagatta, por fim, ressalta a importância da relação entre a Public History e a busca por novas formas de comunicação, “livre para mover-se através das novas mídias, novas tecnologias” e, ainda que fiel aos métodos e sua transmissão, capaz de dialogar mesmo com públicos que, pensa ele, a priori não valorizam a história.       

Essa premissa não é uma novidade. Michael Frisch já havia sugerido que a comunicação com o grande público deveria ser entendida como um processo de mútuo aprendizado. Processo capaz de produzir um passado mais significativo e útil, marcado pela noção de “autoridade compartilhada” (FRISCH, 1990). Como explicou mais recentemente, “a Shared Authority sugere algo que é; que na natureza da história oral e da história pública nós não somos a única autoridade, os únicos intérpretes, os únicos autores-historiadores” (MAUAD; ALMEIDA; SANTHIAGO, 2016, p. 57-69). Entre “o cru e o cozido”, entre a documentação e a produção dos scholars, Frisch convida-nos a visitar sua “cozinha digital”. Um projeto de indexação de documentos audiovisuais cujo objetivo, alega, é transformar a “coleção crua em porta legível e explorável”, de modo a superar “a dicotomia entre criação de conhecimento e consumo de conhecimento” (FRISCH, 2011, p. 63-65). Jurandir Malerba resume essa perspectiva de História Pública:

Os historiadores não simplesmente divulgam o conhecimento para o público, mas devem trabalhar em conjunto com as pessoas comuns. O passado seria reconhecido como o terreno social em constante mudança, e os historiadores e o público deveriam cooperar e trocar ideias de modo a que sua expertise pudesse satisfazer as necessidades, desejos e conhecimento cultural do outro (MALERBA, 2017, p.10).

Fischer reconhece que a História Pública “ganha formas um pouco diferentes e é discutida com inflexões distintas nos seus variados contextos” (FRISCH, 2016, p. 58). Fenômeno global que responde às dinâmicas locais de demandas contemporâneas da sociedade, a História Pública hoje é igualmente discutida e praticada no Brasil. Ricardo Santhiago engajou-se na discussão que impulsiona a historiografia rumo ao audiovisual e às novas linguagens digitais. Para Santhiago, a História Pública ajuda a difundir “o verbo, o som e a imagem do passado para audiências não acadêmicas” (MAUAD; ALMEIDA; SANTHIAGO, 2016, p. 24). Por vezes, chega também a funcionar como uma concepção guarda-chuva capaz de agregar estudos sobre:

(…) usos da memória; usos do passado; demanda social; percepção pública da história; divulgação científica da história; interpretação e curadoria; empoderamento e pesquisa-ação; apropriações midiáticas; literárias e artísticas da história – e assim por diante (MAUAD; ALMEIDA; SANTHIAGO, 2016, p. 24).

Trata-se de um conceito disputado. Nele, diferentes abordagens concorrem e contribuem para enriquecer seu significado. Em uma dimensão mais pragmática, a História Pública é entendida como veículo do conhecimento histórico em direção aos grandes públicos (GARDNER; LAPAGLIA, 1999, p. 30). Outra visão, algo própria, nos Estados Unidos, aos historiadores públicos sociais, entende a atividade como diálogo, reflexão e produção de história no encontro da academia com o público (GRELE, 1981, p. 46). Outras leituras apontam para as possibilidades da agência pública por parte da historiografia. Com o desenvolvimento das tecnologias digitais (Web 2.0), a antiga proposta de “ajudar as pessoas a escrever, criar e compreender suas próprias histórias” ganha novas proporções (MALERBA, 2017, p. 10-11). No mesmo momento, os impactos globais das culturas de memória e presença, identidade e demandas de orientação no tempo, imprimem, desde a órbita do multiculturalismo, um “valor especialmente forte na história pública” (FRISCH, 2011, p. 58).

No Brasil os debates sobre História Pública ainda buscam caminhos claros entre a atividade, a reflexão sobre ela e a diversificação de postos no mercado de trabalho, sendo esse último um dos seus pontos comuns de preocupação. Desde 2011, eventos, publicações e iniciativas nessa área têm buscado conquistar espaços (ALMEIDA; ROVAI, 2011). Dentro das atribuições da docência universitária, a História Pública descreveria a extensão, muito embora seus métodos, debates e questionamentos possam vir a redimensionar a própria ideia de extensão universitária.

Divulgar o saber histórico, como se a luz do conhecimento acadêmico devesse se estender à periferia, ou produzir reflexões históricas junto ao público? Refletir sobre os usos do passado no espaço público ou tornar-se um agente em disputas narrativas? Buscar o diálogo com um público específico, como uma comunidade, uma sala de aula, uma associação de bairro? Ou tentar alcançar um público amplo, virtual, social e espacialmente fragmentado? Colaborar coletivamente, compartilhar e negociar a autoridade, ao mesmo tempo promovendo a autogestão e o “controle de acesso” (gatekeeping) em um projeto Wiki? Produzir conteúdo agradável ao grande público, ou problematizar conceitos históricos úteis para a vida da comunidade a partir de experiências audiovisuais?  

Essas são questões fundamentais para as historiadoras e os historiadores de hoje. São também demandas frequentes vindas dos bancos da universidade, lançadas por estudantes de história. Questionamentos enunciados, portanto, por quem representa o futuro de nossa profissão. São demandas que aparecem quando o passado passa a ser alvo de disputa. No momento em que a ciência da história é questionada. Em uma era na qual a mentira e a infâmia irrompem no espaço público. Na qual a desinformação é disseminada por robôs e catapultada por algoritmos a serviço de ideologias retrógradas e valores obscurantistas. A História Pública pode ser uma resposta a esse estado de coisas. Conceito que media a relação entre o conhecimento especializado e a vida prática, a História Pública, em suas múltiplas acepções, engaja-se na virada ética desde o ponto de vista da educação para a informação.    

Afinal, quando a mentira e a injustiça dominam o presente, resta-nos a convicção de que a História e a verdade pertencem ao amanhã. É por isso que a História Pública é ao mesmo tempo uma demanda geracional e um conceito fundamental de nosso tempo. Ela concentra o significado de nossos horizontes de expectativas (Cf. IFVERSEN 2011, p. 85). Em outras palavras, ao falar do passado junto a amplas audiências, a História Pública adquire a capacidade de libertar o futuro.  

Autor: Prof. Dr. Professor Rodrigo Bragio Bonaldo (UFSC).

Para uma bibliografia comentada, conferir: https://www.cafehistoria.com.br/historia-publica-biblio/

Referências:

ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (org.) Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011. Também: Anais do Simpósio Internacional de História Pública: A história e seus públicos. São Paulo: Rede Brasileira de História Pública, 2012, assim como a RBHP: http://historiapublica.com.br e projetos como o www.cafehistoria.com.br/.

FRISCH, Michael. A História Pública não é uma via de mão única: ou De: A Shared Authority à cozinha digital, e vice-versa. In: MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (org). História Pública no Brasil: Sentidos e Itinerários. São Paulo. Letra e Voz. p. 57-69, 2016. 

FRISCH, Michael. A Shared Authority: Essays on the Craft and Meaning of Oral and Public History. Albany: State University of New York Press, 1990.

FRISCH, Michael. From a Shared Authority to the Digital Kitchen, and Back. Philadelphia, PA: The Pew Center for Arts and Heritage, 2011.

GARDNER, James B; LAPAGLIA, Peter S. Public History: Essays from the Field. Public History Series. Krieger Publishing Company. Malabar, Florida. 1999.

GRELE, Ronald J. Whose Public? Whose History? What Is the Goal of a Public Historian? The Public Historian 3:1. Inverno de 1981.

IFVERSEN, Jan. About Key Concepts and How to Study Them. Contributions to the History of Concepts. v. 6, n. 1, p. 65-88, 2011.

MALERBA, Jurandir. Os historiadores e seus públicos: desafios ao conhecimento histórico na era digital. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, 2017.

NIETZSCHE, Friedrich, The Birth of Tragedy and The Genealogy of Morals, trans. Francis Golffing. New York: Doubleday, 1956 apud KOSELLECK, Reinhart. Introduction and Prefaces to the Geschichtliche Grundbegriffe. In: Contributions to the History of Concepts. Volume 6, Issue 1, Summer 2011

Vídeo com entrevistas. What if Public History for you? European University Institute. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=SvQnP6KAsJA>. Acesso 03 de abril de 2020. 

Evento de 2015. Disponível em: < http://www.eui.eu/events/detail.aspx?eventid=101227 >. Acesso em 03 de abril de 2020.